20 março 2015

Um Criança Chora - Rubem Alves

Mesmo com o avanço da idade e do eminente amadurecimento, mora em nós uma criança que vive com seus medos e angústias. E que, por vezes, nos faz derramar lágrimas.

 
Minha alma tem estado a visitar a minha infância. Fantasias. O que são fantasias? As fantasias de infância são as memórias transfiguradas pela saudade. Eu poderia colocar minhas fantasias de infância em álbuns diferentes, como se fossem fotografias. Fantasias dos pequenos espaços (a cabaninha, a casa no alto da árvore), as fantasias dos grandes espaços (os campos, os jardins), as fantasias da noite com seus terrores...

 Antigamente... essa palavra me intrigava. Ouvia que os grandes em suas visitas noturnas a usavam com frequência. E eu perguntava: “Quando é antigamente?” Nunca me explicaram. Mas agora eu sei quando é antigamente. Pois antigamente os grandes gostavam de fazer sofrer as crianças. Acho que eles pensavam que as crianças não tinham o “lá dentro” onde mora o sofrimento.

 Os grandes me faziam sofrer e riam do meu sofrimento. Mentiam para me fazer sofrer. Eu devia ter uns quatro anos, na roça. Perto da casa havia uma mata fechada. Por medo, eu nunca me aproximei dela. Diziam que lá moravam onças. E os grandes me diziam que naquela mata fechada morava um menino. E, para provarem, diziam: “Quer ver?” E gritavam: “Ô menino!” O grito batia na mata e voltava como eco bem fraco: “Ô menino...” Mas eu nada sabia sobre ecos. Sim, era a voz fraca de um menino abandonado. Que pais o teriam deixado lá? E por que ele ficava lá?

E a imagem daquele menino não me deixava. De noite, na minha cama, eu me lembrava dele sozinho no escuro. Como eu desejava poder trazê-lo para a segurança da minha casa! Mas eu nada podia fazer. E assim dormia, sofrendo o abandono do menino. Nunca vi o dito menino, porque ele não existia. Mas a alma não sabe o que é isso, o não existir. Aquilo que é sentido existe. A alma é um lugar assombrado onde moram as mais estranhas criaturas que, sem existirem, existem.

 Lembro-me de que, numa dessas noites, eu chorava baixinho. Chorava de angústia. Minha mãe ouviu o meu choro e veio assentar-se ao meu lado para saber o que me fazia sofrer.

 Expus-lhe, então, a minha aflição: “Mãe, quando eu crescer, como é que vou fazer para arranjar uma mulher?”, “Mãe, quando eu crescer como é que vou fazer para ganhar a vida?”

Quem tomar essas perguntas no seu literalismo se rirá delas. Não é engraçado que problemas tão distantes façam uma criança chorar? Mas o seu sentido não se encontra na letra. Ele se encontra no não dito, na noite escura de onde surgiram, noite da minha alma, aquela noite quando seria inútil chamar por pai ou por mãe, porque não haveria ninguém para ouvir. Naquela noite eu chorava pela minha solidão, pelo abandono que me esperava, quando eu seria como o menino da mata.

 O menino abandona- do não me abandonou. Entrou dentro de mim e mora comigo. Me faz sofrer. Me dá ternura. Sempre que vejo uma criança abandonada, eu sofro. Quereria poder protegê-la, cuidar dela. Eu me enterneço porque a criança abandonada que mora em mim está sofrendo. Afinal, todos somos crianças abandonadas. Nos momentos de solidão noturna, de insônia, tomamos consciência de que estamos destinados ao abandono, àquele tempo quando será inútil chamar “meu pai” ou “minha mãe”. É assim que me sinto, às vezes. Tenho, então, vontade de chorar...

14 março 2015



Veloz como o vento
Silencioso como a floresta
Feroz como o fogo
Inalterável como a montanha.


In: Kagemusha, a Sombra do Samurai
Akira Kurosawa - 1980.

28 fevereiro 2015

Apenas mais uma de amor - Lulu Santos

Eu gosto tanto de você
Que até prefiro esconder
Deixo assim ficar 
Subentendido

Como uma ideia que existe na cabeça
E não tem a menor obrigação de acontecer

...

Se amanhã não for nada disso
Caberá só a mim esquecer
O que eu ganho, o que eu perco
Ninguém precisa saber

31 janeiro 2015

Non, je ne regrette rien.


Non, rien de rien...
Non, je ne regrette rien...


Somos nosso passado em ato. E, como na célebre canção "Non, je ne regrette rien" [Não me arrependo de nada] , uma vez que tudo me precede me leva a ser aquele que sou hoje perante vocês e perante mim mesmo. Numa palavra, somos nosso passado atualizado, o que digo, somos nosso inconsciente atualizado; um inconsciente que não está atrás de nós mas dentro de nós, recolhido no aqui e agora do ato que marca o que acabamos de executar. Quando Édith Piaf canta "Non, rien de rien, je ne regrette rien"  [Não me arrependo absolutamente de nada], não é uma neurótica que se lamenta e gostaria de reconstruir seu passado. Ao contrário, é um sujeito orgulhoso de seu passado, ainda que tenha sido às vezes tempestuoso, um sujeito em consonância consigo mesmo e, para resumir, em paz com o próprio consciente. 



J. - D. NASIO  in  Por que repetimos os mesmos erros - 2013 - Ed. Zahar


Parque do Ibirapuera - SP