14 dezembro 2010

"O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido."
(Rubem Alves)

Certezas - Mario Quintana

Não quero alguém que morra de amor por mim...
Só preciso de alguém que viva por mim, que queira estar junto de mim, me abraçando.
Não exijo que esse alguém me ame como eu o amo, quero apenas que me ame, não me importando com que intensidade.
Não tenho a pretensão de que todas as pessoas que gosto, gostem de mim...
Nem que eu faça a falta que elas me fazem, o importante para mim é saber que eu, em algum momento, fui insubstituível...
E que esse momento será inesquecível...
Só quero que meu sentimento seja valorizado.
Quero sempre poder ter um sorriso estampando em meu rosto, mesmo quando a situação não for muito alegre...
E que esse meu sorriso consiga transmitir paz para os que estiverem ao meu redor.
Quero poder fechar meus olhos e imaginar alguém...e poder ter a absoluta certeza de que esse alguém também pensa em mim quando fecha os olhos, que faço falta quando não estou por perto.
Queria ter a certeza de que apesar de minhas renúncias e loucuras, alguém me valoriza pelo que sou, não pelo que tenho...
Que me veja como um ser humano completo, que abusa demais dos bons sentimentos que a vida lhe proporciona, que dê valor ao que realmente importa, que é meu sentimento...e não brinque com ele.
E que esse alguém me peça para que eu nunca mude, para que eu nunca cresça, para que eu seja sempre eu mesmo.
Não quero brigar com o mundo, mas se um dia isso acontecer, quero ter forças suficientes para mostrar a ele que o amor existe...
Que ele é superior ao ódio e ao rancor, e que não existe vitória sem humildade e paz.
Quero poder acreditar que mesmo se hoje eu fracassar, amanhã será outro dia, e se eu não desistir dos meus sonhos e propósitos, talvez obterei êxito e serei plenamente feliz.
Que eu nunca deixe minha esperança ser abalada por palavras pessimistas...
Que a esperança nunca me pareça um NÃO que a gente teima em maquiá-lo de verde e entendê-lo como SIM.
Quero poder ter a liberdade de dizer o que sinto a uma pessoa, de poder dizer a alguém o quanto ele é especial e importante pra mim, sem ter de me preocupar com terceiros... Sem correr o risco de ferir uma ou mais pessoas com esse sentimento.
Quero, um dia, poder dizer às pessoas que nada foi em vão...

Que o amor existe, que vale a pena se doar às amizades e às pessoas, que a vida é bela sim, e que eu sempre dei o melhor de mim... e que valeu a pena.

17 novembro 2010

Faxina - Martha Medeiros




Estava precisando fazer uma faxina em mim... Jogar fora alguns pensamentos indesejados, tirar o pó de uns sonhos, lavar alguns desejos que estavam enferrujando...
Tirei do fundo das gavetas lembranças que não uso e não quero mais. Joguei fora ilusões, papéis de presente que nunca usei, sorrisos que nunca darei... Joguei fora a raiva e o rancor nas flores murchas guardadas num livro que não li.
Peguei meus sorrisos futuros e alegrias pretendidas e as coloquei num cantinho, bem arrumadinhas. Fiquei sem paciência! Tirei tudo de dentro do armário e fui jogando no chão: paixões escondidas, desejos reprimidos, palavras horríveis que nunca queria ter dito, mágoas de uma amiga sem gratidão, lembranças de um dia triste...
Mas lá havia outras coisas... belas!!! Uma lua cor de prata...os abraços.... aquela gargalhada no cinema, o primeiro beijo.... o pôr do sol.... uma noite de amor .
Encantada e me distraindo, fiquei olhando aquelas lembranças. Sentei no chão, joguei direto no saco de lixo os restos de um amor que me magoou. Peguei as palavras de raiva e de dor que estavam na prateleira de cima - pois quase não as uso - e também joguei fora! Outras coisas que ainda me magoam, coloquei num canto para depois ver o que fazer, se as esqueço ou se vão pro lixo. Revirei aquela gaveta onde se guarda tudo de importante: amor, alegria, sorrisos, fé… Como foi bom!!! Recolhi com carinho o amor encontrado, dobrei direitinho os desejos, perfumei na esperança, passei um paninho nas minhas metas e deixei-as à mostra. Coloquei nas gavetas de baixo lembranças da infância; em cima, as de minha juventude, e... pendurado bem à minha frente, coloquei a minha capacidade de amar... e de recomeçar..



                                                                                                                                        

09 setembro 2010

Loucos e Santos - Oscar Wilde

[Para Vilma -  que tem brilho questionador e tonalidade inquietante.]


Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta.
Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou.
Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

05 setembro 2010

Desejo - Rabindranah Tagore



Desejo dizer-lhe as palavras mais profundas, mas não me atrevo, porque temo sua gozação. Por isso acho graça de mim mesmo e transformo em brincadeira meu segredo.
Duvido de minha angústia, para que você não duvide.
Desejo dizer-lhe as palavras mais sinceras, mas não me atrevo, porque temo que não acredite. Por isso as disfarço de mentiras e digo o contrário do que penso.
Me esforço para que minha angústia não pareça absurda para que você não ache que é.
Desejo dizer-lhe as palavras mais valiosas, mas não me atrevo, porque temo não ser correspondido. Por isso me declaro duramente e me orgulho de minha insensibilidade.
Desejo sentar-me silenciosamente a seu lado, mas não me atrevo, porque temo que meus lábios traiam meu coração. Por isso falo disparatadamente, escondendo meu coração atrás das minhas palavras.
Trato a mim mesmo com dureza, para que você não o faça.
Desejo separar-me de você, mas não me atrevo, porque temo que descubra minha covardia. Por isso levanto a cabeça e fico perto de você com ar indiferente.
A constante provocação de nossos olhares remove minha angústia sem piedade.

18 agosto 2010

"A verdade é a própria vida que a exprime: é a vida em ato...Há uma luta entre a existência e o pensamento, mas a realidade pensada, e portanto abstrata, nunca passa de um possível."
(Søren Kierkegaard)

19 junho 2010

José Saramago (1922 - 2010)


“Acho que na sociedade atual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de refexão, que pode não ter um objetivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objetivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma.”

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"Estamos afundados na merda do mundo e não se pode ser otimista. O otimista, ou é estúpido, ou insensível ou milionário."

30 maio 2010

Poema Negro - Augusto dos Anjos


Para iludir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me iludo.
Para onde vou (o mundo inteiro o nota)
Nos meus olhares fúnebres, carrego
A indiferença estúpida de um cego
E o ar indolente de um chinês idiota!

A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
— Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.

Em vão com o grito do meu peito impreco!
Dos brados meus ouvindo apenas o eco,
Eu torço os braços numa angústia douda
E muita vez, à meia-noite, rio
Sinistramente, vendo o verme frio
Que há de comer a minha carne toda!

É a Morte — esta carnívora assanhada —
Serpente má de língua envenenada
Que tudo que acha no caminho, come...
— Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,
Sai para assassinar o mundo inteiro,
E o mundo inteiro não lhe mata a fome!

Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino. . .
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquele embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!

Surpreendo-me, sozinho, numa cova.
Então meu desvario se renova...
Como que, abrindo todos os jazigos,
A Morte, em trajos pretos e amarelos,
Levanta contra mim grandes cutelos
E as baionetas dos dragões antigos!

E quando vi que aquilo vinha vindo
Eu fui caindo como um sol caindo
De declínio em declínio; e de declínio
Em declínio, com a gula de uma fera,
Quis ver o que era, e quando vi o que era,
Vi que era pó, vi que era esterquilínio!
...


Semeadora terrível de defuntos,
Contra a agressão dos teus contrastes juntos
A besta, que em mim dorme, acorda em berros
Acorda, e após gritar a última injúria,
Chocalha os dentes com medonha fúria
Como se fosse o atrito de dois ferros!

Pois bem! Chegou minha hora de vingança.
Tu mataste o meu tempo de criança
E de segunda-feira até domingo,
Amarrado no horror de tua rede,
Deste-me fogo quando eu tinha sede...
Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo!
....

Na agonia de tantos pesadelos
Uma dor bruta puxa-me os cabelos,
Desperto. É tão vazia a minha vida!
No pensamento desconexo e falho
Trago as cartas confusas de um baralho
E um pedaço de cera derretida!

Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensangüento na vigília!
E observo, enquanto o horror me corta a fala,
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília.

Meu coração, como um cristal, se quebre
O termômetro negue minha febre,
Torne-se gelo o sangue que me abrasa,
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruínas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!

Ao terminar este sentido poema
Onde vazei a minha dor suprema
Tenho os olhos em lágrimas imersos...
Rola-me na cabeça o cérebro oco.
Por ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui por diante não farei mais versos.

"A angústia é a disposição fundamental que nos coloca perante o nada." (Heidegger)

19 maio 2010


"É preciso ter um caos dentro de si para dar a luz uma estrela cintilante." (Nietzsche)

06 maio 2010

"Hoje trabalhei exaustivamente no texto: fiquei a manhã inteira para colocar uma vírgula, e a tarde inteira para tirá-la."
(Oscar Wilde)

30 abril 2010

A Falência do Prazer e do Amor - Fernando Pessoa

I

Beber a vida num trago, e nesse trago
Todas as sensações que a vida dá
Em todas as suas formas [...]
……………………………………………………………
Dantes eu queria
Embeber-me nas árvores, nas flores,
Sonhar nas rochas, mares, solidões.
Hoje não, fujo dessa idéia louca:
Tudo o que me aproxima do mistério
Confrange-me de horror. Quero hoje apenas
Sensações, muitas, muitas sensações,
De tudo, de todos neste mundo — humanas,
Não outras de delírios panteístas
Mas sim perpétuos choques de prazer
Mudando sempre,
Guardando forte a personalidade
Para sintetizá-las num sentir.
Quero
Afogar em bulício, em luz, em vozes,
— Tumultuárias [cousas] usuais —
o sentimento da desolação
Que me enche e me avassala.
Folgaria
De encher num dia, [...] num trago,
A medida dos vícios, inda mesmo
Que fosse condenado eternamente —
Loucura! — ao tal inferno,
A um inferno real.
II
Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas,
Como me amarga n’alma essa alegria!
……………………………………………………………
Nem em criança, ser predestinado,
Alegre eu era assim; no meu brincar,
Nas minhas ilusões da infância, eu punha
O mal da minha predestinação.
……………………………………………………………
Acabemos com esta vida assim!
Acabemos! o modo pouco importa!
Sofrer mais já não posso. Pois verei —
Eu, Fausto — aqueles que não sentem bem
Toda a extensão da felicidade,
Gozá-la?
……………………………………………………………
Ferve a revolta em mim
Contra a causa da vida que me fez
Qual sou. E morrerei e deixarei
Neste mundo isto apenas: uma vida
Só prazer e só gozo, só amor,
Só inconsciência em estéril pensamento
E desprezo [...]
Mas eu como entrarei naquela vida?
Eu não nasci para ela.
III
Melodia vaga
Para ti se eleva
E, chorando, leva
O teu coração,
Já de dor exausto,
E sonhando o afaga.
Os teus olhos, Fausto,
Não mais chorarão.
IV
Já não tenho alma. Dei-a à luz e ao ruído,
Só sinto um vácuo imenso onde alma tive…
Sou qualquer cousa de exterior apenas,
Consciente apenas de já nada ser…
Pertenço à estúrdia e à crápula da noite
Sou só delas, encontro-me disperso
Por cada grito bêbedo, por cada
Tom da luz no amplo bojo das botelhas.
Participo da névoa luminosa
Da orgia e da mentira do prazer.
E uma febre e um vácuo que há em mim
Confessa-me já morto… Palpo, em torno
Da minha alma, os fragmentos do meu ser
Com o hábito imortal de perscrutar-me.
V
Perdido
No labirinto de mim mesmo, já
Não sei qual o caminho que me leva
Dele à realidade humana e clara
Cheia de luz [...] alegremente
Mas com profunda pesadez em mim
Esta alegria, esta felicidade,
Que odeio e que me fere [...]
……………………………………………………………
Sinto como um insulto esta alegria
— Toda a alegria. Quase que sinto
Que rir, é rir — não de mim, mas, talvez,
Do meu ser.
VI
Toda a alegria me gela, me faz ódio.
Toda a tristeza alheia me aborrece,
Absorto eu na minha, maior muito Que outras
[...]
……………………………………………………………
Sinto em mim que a minha alma não tolera
Que seja alguém do que ela mais feliz;
O riso insulta-me, por existir;
Que eu sinto que não quero que alguém ria
Enquanto eu não puder. Se acaso tento
Sentir, querer, só quero incoerências
De indefinida aspiração imensa,
Que mesmo no seu sonho é desmedida …
VII
tua inconsciência alegre é uma ofensa
para mim. O seu riso esbofeteia-me!
Tua alegria cospe-me na cara!
Oh, com que ódio carnal e espiritual
escarro sobre o que na alma humana
Fria festas e danças e cantigas…
…………………………………………………………..
Com que alegria minha, cairia
Um raio entre eles! Com que pronto
Criaria torturas para eles
Só por rirem a vida em minha cara
E atirarem à minha face pálida
O seu gozo em viver, a poeira — que arda
Em meus olhos — dos seus momentos ocos
De infância adulta e tudo na alegria!
……………………………………………………………
Ó ódio, alegra-me tu sequer!
Faze-me ver a Morte. roendo a todos,
Põe-me ria vista os vermes trabalhando
Aqueles corpos! [...]
VIII
Triste horror d’alma, não evoco já
Com grata saudade, tristemente,
Estas recordações da juventude!
Já não sinto saudades, como há pouco
Inda as sentia. Vai-se-me embotando,
Co’a força de pensar, contínuo e árido,
Toda a verdura e flor do pensamento.
Ao recordar agora, apenas sinto,
Como um cansaço só de ter vivido,
Desconsolado e mudo sentimento
De ter deixado atrás parte de mim,
E saudade de não ter saudade,
Saudades dos tempos em que as tinha.
Se a minha infância agora evoco, vejo
— Estranho! — como uma outra criatura
Que me era amiga, numa vaga
Objetivada subjetividade.
Ora a infância me lembra, como um sonho,
Ora a uma distância sem medida
No tempo, desfazendo-me em espanto;
E a sensação que sinto, ao perceber
Que vou passando, já tem mais de horror
Que tristeza [...]
E nada evoca, a não ser o mistério
Que o tempo tem fechado em sua mão.
Mas a dor é maior!
IX
Ó vestidas razões! Dor que é vergonha
E por vergonha de si-própria cala
A si-mesma o seu nexo! Ó vil e baixa
Porca animalidade do animal,
Que se diz metafísica por medo
A saber-se só baixa …
……………………………………………………………
Ó horror metafísico de ti!
Sentido pelo instinto, não na mente!
Vil metafísica do horror da carne,
Medo do amor…
Entre o teu corpo e o meu desejo dele
‘Stá o abismo de seres consciente;
Pudesse-te eu amar sem que existisses
E possuir-te sem que ali estivesses!
Ah, que hábito recluso de pensar
Tão desterra o animal que ousar não ouso
O que a [besta mais vil] do mundo vil
Obra por maquinismo.
Tanto fechei à chave, aos olhos de outros,
Quanto em mim é instinto, que não sei
Com que gestos ou modos revelar
Um só instinto meu a olhos que olhem …
……………………………………………………………
Deus pessoal, deus gente, dos que crêem,
Existe, para que eu te possa odiar!
Quero alguém a quem possa a maldição
Lançar da minha vida que morri,
E não o vácuo só da noite muda
Que me não ouve.
X
O horror metafísico de Outrem!
O pavor de uma consciência alheia
Como um deus a espreitar-me!
Quem me dera
Ser a única [cousa ou] animal
Para não ter olhares sobre mim!
XI
Um corpo humano!
Às vezes eu, olhando o próprio corpo,
Estremecia de terror ao vê-lo
Assim na realidade, tão carnal.
XII
…………………………………………. Sinto horror
À significação que olhos humanos
Contém…
……………………………………………………………
Sinto preciso
Ocultar o meu íntimo aos olhares
E aos perscrutamentos que olhares mostram;
Não quero que ninguém saiba o que sinto,
Além de que o não posso a alguém dizer…
XIII
Com que gesto de alma
Dou o passo de mim até à posse
Do corpo de outros, horrorosamente
Vivo, consciente, atento a mim, tão ele
Como eu sou eu.

16 abril 2010

Palavras - Marcelo Fromer/Sérgio Britto

Palavras não são más
Palavras não são quentes
Palavras são iguais
Sendo diferentes
Palavras não são frias
Palavras não são boas
Os números pra os dias
E os nomes pra as pessoas
Palavra eu preciso
Preciso com urgência
Palavras que se usem
em caso de emergência
Dizer o que se sente
Cumprir uma sentença
Palavras que se diz
Se diz e não se pensa
Palavras não têm cor
Palavras não têm culpa
Palavras de amor
Pra pedir desculpas
Palavras doentias
Páginas rasgadas
Palavras não se curam
Certas ou erradas
Palavras são sombras
As sombras viram jogos
Palavras pra brincar
Brinquedos quebram logo
Palavras pra esquecer
Versos que repito
Palavras pra dizer
De novo o que foi dito
Todas as folhas em branco
Todos os livros fechados
Tudo com todas as letras
Nada de novo debaixo do sol

08 abril 2010

O Que Há - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...

26 março 2010

Hora Absurda - Fernando Pessoa



O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas…
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso…
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraiso…
Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte…
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto…
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia…, e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em côr a minha arte…
Abre tôdas as portas e que o vento varra a idéia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões…
Minha alma é uma caverna enchida p’la maré cheia,
E a minha idéia de te sonhar uma caravana de histriões…
Chove ouro baço, mas não no lá-fora…É em mim…Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e tôda ela escombros dela…
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora…
No meu céu interior nunca houve uma única estrela…
Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um pôrto…
A chuva miúda é vazia…A Hora sabe a ter sido…
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!…Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido…
Tôdas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias tôdas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má…
Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos…
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas…
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas…
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos…
Ah, como esta hora é velha!… E tôdas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
De longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam…
O palácio está em ruínas… Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo… Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudade de si ante aquêle lugar-outono…
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada…
A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas…
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros…
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?…
Por que me aflijo e me enfermo?…Deitam-se nuas ao luar
Tôdas as ninfas… Veio o sol e já tinham partido…
O teu silêncio que me embala é a idéia de naufragar,
E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido…
Já não há caudas de pavões tôdas olhos nos jardins de outrora…
As próprias sombras estão mais tristes…Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alamêda que eis finda…
Todos os ocasos fundiram-se na minha alma…
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios…
Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um pôrto sem navios…
Ergueram-se a um tempo todos os remos…pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar…Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras…
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente…
Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Tôdas as princesas sentiram o seio oprimido…
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido…
Sermos, e não sermos mais!… Ó leões nascidos na jaula!…
Repique de sinos para além, no Outro Vale… Perto?…
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula…
Por que não há de ser o Norte e Sul?… O que está descoberto?…
E eu deliro… De repente pauso no que penso…Fito-te…
E o teu silêncio é uma cegueira minha…Fito-te e sonho…
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor de medonho…
Para que não ter por ti desprêzo? Por que não perdê-lo?…
Ah, deixa que eu te ignore…O teu silêncio é um leque —
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque…
Gelaram tôdas as mãos cruzadas sôbre todos os peitos….
Murcharam mais flôres do que as que havia no jardim…
O meu amar-te é uma catedral de silêncio eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim…
Alguém vai entrar pela porta…Sente-se o ar sorrir…
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem…
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem…
É preciso destruir o propósito de tôdas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de tôdas as terras,
Endireitar à fôrça a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras…
Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!…
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã — como nos desalegra!…
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra…
Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce…
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito…
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito…
Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!…
Ah, se fôssemos as duas côres de uma bandeira de glória!…
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro êste lema — Vitória!
O que é que me tortura?… Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos…
Não sei…Eu sou um doido que estranha a sua própria alma…
Eu fui amado em efígie num país para além dos so
nhos…

27 fevereiro 2010

Esta Velha Angústia - Fernando Pessoa

Esta velha angústia, 
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...

16 fevereiro 2010

Poema em Linha Reta - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos).

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

14 fevereiro 2010

"Vivemos num mundo em que a fala foi instituída...
O sentido da palavra não é feito de um certo número
de caracteres físicos , mas é, antes de tudo, o aspecto
que ela assume numa experiência humana."
(Maurice Merleau-Ponty)

01 janeiro 2010

Desejos - Carlos Drummond de Andrade

Para você,
Desejo o sonho realizado.
O amor esperado.
A esperança renovada.
Para você,
Desejo todas as cores desta vida.
Todas as alegrias que puder sorrir.
Todas as músicas que puder emocionar.
Para você neste novo ano,
Desejo que os amigos sejam mais cúmplices,
Que sua família esteja mais unida,
Que sua vida seja mais bem vivida.
Gostaria de lhe desejar tantas coisas.
Mas nada seria suficiente...
Então, desejo apenas que você tenha muitos desejos.
Desejos grandes e que eles possam te mover a cada minuto,
ao rumo da sua felicidade!